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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Experiencias de sertanejos com assombrações


A presente pesquisa foi realizada na pequena comunidade de Santa Tereza as margens o açude Paulo Sarasate na cidade de Hidrolândia-Ce, esta cidade que está geograficamente situada no sertão central cearense, onde há predominância do clima semi-árido, assim a temática da pesquisa, mesmo estando ligada a memória dos moradores será o modo de vida dentro das possibilidades da cultura no semi-árido nordestino, contudo um fato de relevância na pesquisa será a localidade pesquisada ser banhada pelo açude Paulo Sarasate, onde o mesmo terá papel determinante na memória de vida daquela comunidade. a mesma é parte integrante da monografia de termino de curso.

Entre histórias, outras histórias

Ao falarmos das memórias dos sertanejos não poderíamos deixar de nos ater a esses lados das histórias de assombrações de um sertão ainda mágico, no sentido de misterioso, com suas noites escuras, onde na década de sessenta não possuía energia elétrica o que fazia da noite no sertão algo ainda misterioso pelo escuro da noite das sobras das arvores.
O percurso que vai se configurando para essa pesquisa persegue não apenas o significado do mistério da caatinga, mas também o significado da memória construída em torno desse mistério, o sentido simbólico que carregam certas plantas, certos animais, certas horas do dia ou da noite e mesmo certos acidentes de relevo, e que fazem emergiram sentimentos como medo, respeito, o fascínio em torno do que julga vulgarmente 'superstição'[1]
Um tempo não muito distante para nossos narradores, escutar essas histórias e se propor a analisar é adentrar numa cultura rica onde o trabalho em muitos casos se confunde com o lazer, compreender que não era pessoas perdidas num atraso cultural , mesmo como nos coloca E. P Thompson, em seu livro Costumes em comum, "as gerações sucessivas já não se colocam na posição de aprendizes umas das outras"[2] é um modo de viver peculiar, no sertão, que agora banhado pelas águas do Araras, se afirmava como um sertão molhado.
A memória dos indivíduos precisa ser preservada, quando iniciamos nossas conversas eram comuns nas falas dos nossos narradores, expressões do tipo, 'hoje não se faz mais isso', 'no nosso tempo era assim', fazendo referencia ao seu tempo a outra época, é como se no presente não fosse seu tempo, seria o tempo dos mais jovens, a memória está em constante adaptação aos momentos, vejamos o que Portelli nos diz a respeito desse assunto.
Para que o contador se recupere do tempo e se movimente para frente no tempo, o conto precisa ser preservado. Isto se aplica tanto às narrativas individuais quanto à coletivas: aplica-se também aos mitos que moldam a identidade de um grupo, tanto quanto às recordações pessoais que moldam a identidade do individuo.[3]
O tempo para nossos narradores em alguns momentos está em algo distante, que não pode ser alcançado, distanciado, 'é o tempo do mito do conto de fadas'[4].
As narrativas não são imutáveis, pois como o narrador está em constante experiências com o presente adquirido novas possibilidades, novos aspectos são colocados nas suas narrativas, novos elementos são incorporados as suas histórias. Uma pessoa deve ter contado sua vida inteira, em uma narrativa curta e direta, mas é diferente de sentar uma tarde e ser inquirido por alguém com um gravador a contar histórias, de sua vida, infância, o tom da narrativa normalmente será outro.
As narrativas sobre contos, lobisomem, saci, caiporas, botijas e outros assombrações das águas não encontram um tempo determinado, em algumas histórias como a de ser perseguido por um lobisomem seu Dion se lembra da noite escura de quinta pra sexta, naquele inicio de inverno, mas não lembra o ano, no entanto sua narrativa vai se transformando em algo real na sua imagem que ele cria da história, kênia Sousa Rios em seu artigo 'A seca nos atalhos da oralidade' nos mostra como as narrativas vão se tornando imagens o passado na voz do narrador. ' A memória, ao ser narrada, tenta organizar não só as imagens do passado, mas também a vida'[5].
Esses atalhos percorridos pela oralidade nos permitiram chegar até aquela noite em que seu Dion após vim de uma noitada na bodega de seu Alípio, encontrou com uma fera na vereda que passava pra sua casa.
Eu nu era home pra medo não, nunca fui, mas ai eu via como disse da budega naquela hora já adiantada da meia noite indiante né, ai ouvi uns dizer que ali tian bicho, mas não tian visto né, intão saiu o barui fei de dento do mato, aquele bicho grande ali de lado na cerca correndo nu meu rumo, ai eu curri numa disparada né, era lobisomem só pudia ser, ali diz que tian né, essa coisa nas noite de quinta pra sexta né, ele aparecia,chegui em casa aperreado minino coisa pra fazer medo.[6]
Segundo nosso narrador não foi possível ver realmente a fisionomia do ser que lhe assombrava, mas seu imaginário estava ali presente, já ouvira as histórias sobre aquele ser, a noite de quinta pra sexta, no inicio do inverno a noite sem estrelas estava escura, criando um cenário de pavor para quem andasse sozinho naquela noite, então algo faz um barulho feio, como nos narrou seu Dion, não é preciso ir muito longe para crer na possibilidade, até mesmo seu Dion ainda duvida, mas as forças das circunstâncias lhe fazem ter essa relação que poderia ser o tão temido bicho
Um mundo de assombrações no imaginário do sertanejo ainda é muito presente mesmo nos dias atuais, nas localidades ainda é comum, até jovens criados nesse meio, hoje com luz elétrica, água encanada e uma ligação mais próxima com a cidade ainda terem medo de sair a noite, principalmente em noites de lua cheia, que segundo a tradição é nessas noites que os lobisomem aparecem.
Keith Tomas em seu Livro 'O homem e o meio natural', já nos falava dessa relação de homens que segundo a tradição se transformação em animais, numa metamorfose, 'essas tais histórias eram consideradas poéticas e condenadas como ficção diabólica'[7], também Carlos Ginzburg fala da capacidade que 'as mulheres tinham em se relacionar com os animais e se transformar nele, durante o ritual do Sabá,'[8] nesse sentido percebemos as relações que os homens e mulheres ao logo dos anos tem com a natureza e os animais, histórias contadas, criadas, recriadas pelo imaginário, tomando vida nas narrativas de homens comuns e suas vidas no sertão.
A historiadora Vasconcelos ao trabalhar o tema das assombrações na caatinga, fazendo uso da oralidade ela vai nos dizer que são histórias de saci, lobisomem, e outros seres de uma vida selvagem.
Uma crença que não é raro entre os sertanejos, relacionada a história do lobisomem, é a de que um outro morador de sua localidade, mulher ou homem, tem a capacidade ou infortúnio de transformar-se em animal, o que se tem evidenciado são as diferentes maneiras que o sertanejos tem de se relacionar com os espaços de vida, numa peleja de adaptação ou de transformação da natureza do semi-árido. [9]
As histórias são práticas de um sertão seu, um modo de pertencimento, é como se ao desvendar essas histórias o encanto de proteger aquelas matas está perdido, pois as histórias estão em suas narrativas como algo que lhes pertencem, fazem parte de sua cultura, seu modo de ver o encanto das florestas e das noites escuras do sertão.
A pratica de contar histórias nessas terras sertanejas, no meio do semi-árido nordestino era muito normal, nas noites estreladas de verão, ou embaixo do alpendre durante uma chuva de inverno, aquele sereno duradouro que passa a noite caindo, invoca os sertanejos após a janta a sentar e começar as conversa, hoje essa pratica quase não existe mais, devido a energia elétrica e com ela a TV, o som, até computadores com internet já se encontra em muitas fazendas do sertão cearense.
Comumente, são histórias sobre lobisomens, caiporas, visões e outros seres relacionados a uma suposta vida selvagem, e também histórias de assombrações durante as caçadas. Essas assombrações "disciplinam horários, bem como passagens e a permanência de seres humanos em determinados locais",[10] como foram possíveis comprovar nas entrevistas realizadas no grupo de sertanejos.
O que ouvimos muito de nossos narradores é a perda da tradição de contar essas histórias, seu Florêncio que reside lá no interior fala que são poucas as vez que se reúnem para contar histórias no terreiro, ele afirma gostar de conversar sobre essas histórias, pois foi assim que viveu sua infância e por muito tempo, mas hoje as coisas são outras, diz ele que os jovens tem outros divertimentos.
Pensar essas narrativas não como uma alusão ao bestial, a um mundo perdido sem cultura, mas como a formulação de uma ética, uma forma de viver, no semi-árido, com a lua a céu a noite e o vento soprando nas janelas com aquele assobio característico desses espaços de serões a noites nos alpendres de casa, ou nas casas de farinhas como já citamos nas noites de farinhadas. Isso nos faz ver o que o sertanejo pensa de si mesmo e de seu próprio espaço, uma vez que esses homens e mulheres são portadores de uma sabedoria que será transmitida com suas experiências sociais, representando uma coletividade.
As histórias são coletivas, no entanto, cada indivíduo tem sua particularidade ao contar essas histórias, seu Florêncio nos contou que tinham umas pessoas engraçadas, que o povo gosta de ouvir contar histórias, para ele uma lugar onde se reunia muita gente para essas histórias era a casa de farinha, veja como ele nos contou uma dessas histórias.
Dinheiro era ouro, ai apareceu uma visagem ai no pé da oiticica tinha uma arueira dentro da oiticica, dentro da arueira tinha um oco seu Manuel dourado guardava dinheiro ouro lá, então se ali tinha uma visagem uma luz atravessando o rio, a dona Maria praz quando o rio tava com muita água fazia aquele remanso eles pegava muito cangati e ai diz que aquela mão cheia de areia jogava em cima dela da vara do anzol, encima daquelas pedras as mulher se assustava e ia se embora, muita gente esse seu João Macena não tinha medo de nada não mas um dia parece que o chapéu dele subiu da cabeça que não sentiu mas o chapéu n cabeça, mas aí passou a luz lá pra baixo do pé de oiticica, ai depois veio esse pessoal aí depois do açude ai o Carinha que era do Jaibara sonhou com a botija mas já tava embaixo d'água, o Antonio do João Martim sonhou também, mas não conseguiu tirar ninguém conseguiu tirar não, se me desse eu achava né o açude secano agora ta chei difícil, risadas. [11]
Nessa história de seu Florêncio percebemos uma transformação da natureza da história, a botija fora enterrada muito antes de o açude Araras ser construído, mas como ninguém conseguia tirar a botija, o ouro ali encantado, então uma visagem como ele próprio ficava ali na oiticica, então após o açude a visagem que antes jogava areia em quem ia pescar no rio que ali passava, agora com o açude a oiticica ficou coberta e só descobriu por duas vez em 1983 numa seca na região e em 1993 dez anos depois outra seca, então não jogando mais areia, mas segundo seu Florêncio agora ali sempre aparece uma luz a noite e espanta os pescadores.
Sobre essa paisagem vivenciada no sertão de outrora vejamos o que a historiadora Vasconcelos nos diz em seu artigo 'Tempos e memórias, Caminhos para os sertanejos: quem conta histórias? Aonde a autora vai falando de suas experiências com os narradores dessas terras sertanejas em pleno sertão cearense, com as vivencias e experiências de sujeitos em um mundo ainda isolado dos grandes centros.
Ao mesmo tempo, conheci o trabalho comunitário da raspa, moagem e secagem da mandioca para a fabricação de farinha, convivi com os serões noturnos que, nesse período da farinhada, reunia na mesma, casa de farinha, homens e mulheres a contarem uns aos outros os últimos acontecimentos, histórias caçadas, de encontro com lobisomem, visagens nos caminhos da matas, lugares assombrados que traçavam a geografia de um sertão mágico.[12]
A historiadora está se referindo a essas histórias, que citamos como a de seu Dion na sua experiência daquele dia escuro a meia noite, buscando entender nessas histórias, ou melhor, entender essa pratica de contação de dessas histórias, em seu contexto de vida como num contexto mais geral, é com esse sentido que estamos trabalhando, entender essas memórias e a sua formação naquela localidade.
Afinal estamos falando de uma cultura que não podemos deixa de chamar de cultura popular, pois está inserida no meio do povo, potencialmente transmitida pela oralidade em meio ao povo. Essas pessoas que estamos procurando conhecer melhor e levá-los para a historiografia ainda estavam pedidos numa massa chamada 'povo'.
Vejamos o que nos diz o historiador Peter Burke em seu livro 'A cultura popular na idade moderna, onde ele analisa a cultura de modo amplo, buscando reconhecer o povo, mostrando qual a importância de se escrever sobre determinadas tradições ou culturas que estão desaparecendo, como é o caso das casas de farinhas do sertão cearenses e suas contações de histórias nas reuniões de alpendres.
A cultura popular de 1800 foi descoberta, ou pelo menos assim julgava os descobridores, bem a tempo. O tema de uma cultura em desaparecimento, que deve ser registrada antes que seja tarde demais, é recorrente nos textos, fazendo com que eles lembrema preocupação atua das sociedades tribais em extinção [13]
A cultura do povo precisa ser escrita, como Burke que escreveu sobre as pessoas comuns, contadores de história profissional ou ocasional, cantores, músicos, menestréis, histórias de pessoas simples, assim o nosso trabalho procurou pessoas simples, histórias que representam uma coletividade, uma cultura sertaneja.
Nesse sentido o nosso trabalho deu nomes a essas pessoas que eram consideradas massas populares, hoje aqui eles tem nome, seu Florêncio, dona Nenem, seu Dion, seu Antonio Duarte, dona Marieta, esses entrevistados mostraram suas histórias, mas eles fazem parte de uma coletividade maior, sua comunidade onde suas memórias foram forjadas, assim essas pessoas estão inseridas em algo maior, a sua individualidade representa aquela coletividade que viveu em Santa Tereza nas décadas de sessenta e setenta.


[1] VASCONCELOS, Regina Ilka, Projeto história: Revista do programa de pós-graduação em História e do departamento de História da PUC de São Paulo n. o(1981) - -São Paulo: EDUC, 1981- periodicidade anual. 1996. p.303-313.
[2] THOMPSON. E.P. Costumes em comum, Estudos sobre a cultura popular tradicional, São Paulo, Companhia das letras, 1998.p.22.
[3] PORTELLI, Alessandro, Tempos e Memórias. Caminhos para os sertanejos: Quem conta histórias. Muitas Memórias, Outras Histórias. Organização Déa Ribeiro Fenellon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida, Yara Aun Khoury. Ed. Olho dágua, maio de 2004.
[4] Idem
[5] RIOS, Kênia Sousa, Projeto história: Revista do programa de pós-graduação em História e do departamento de História da PUC de São Paulo n. o(1981) - -São Paulo: EDUC, 1981- periodicidade anual. 1996. p.287-301.
[6] Dion Ribeiro dos Santos Entrevista realizada em 13-12-2009 na sala de sua residência, na sede de Hidrolândia-Ce.
[7] THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural: Mudança de atitude em relação as plantas e aos animais (1500-1800) – Companhia das Letras 359p.
[8] Ginzbug, Carlo, Histórias noturnas, decifrando o Sabá, São Paulo companhia das letras, 1991, Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história, São Paulo companhia das letras, 1989.
[9] VASCONCELOS, Regina Ilka, Projeto história: Revista do programa de pós-graduação em História e do departamento de História da PUC de São Paulo n. o(1981) - -São Paulo: EDUC, 1981- periodicidade anual. 1996. p.303-313.
[10] APARECIDA, Joana. Projeto história: revista do programa de estudo pós-graduação em história e do departamento de história da Pontifície Universidade Católica de São Paulo, N.O ( 1981) São Paulo: EDUC, 1981. Pp79 – 103.
[11] Florêncio Ferreira Oliveira Neto, entrevista realizada no alpendre de sua residência na Santa Tereza em 20/09/2009
[12] VASCONCELOS, Regina Ilka Vieira. Tempos e Memórias. Caminhos para os sertanejos: Quem conta Histórias. Muitas Memórias, Outras Histórias. Organização Déa Ribeiro Fenellon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida, Yara Aun Khoury. Ed. Olho dágua, Maio de 2004.
[13] BURKE, Peter, Cultura Popular na Idade Moderna, Europa 1500-1800, tradução Denise Bottamann, 2ª edição, Companhia das Letras, 1995.
Ao usar este artigo, mantenha os links e faça referência ao autor:
Um mundo de assombrações. Entre histórias, outras histórias publicado 18/01/2010 por GENARIO BEZERRA em http://www.webartigos.com

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