Pela primeira vez, estamos escrevendo uma resenha de um livro aqui no Ceticismo.net. Depois de muitos pedidos por parte de nossos leitores e eu mesmo, por já ter tido a ideia de fazer isso, mas por falta de vergonha na cara e por ter pouco tempo, fiquei adiando sucessivamente. Mas enfim, resolvi começar a escrever a primeira resenha de muitas (porque eu ainda tenho vários livros para ler em minha casa), e espero que possam orientar os meus queridos leitores na escolha de seus próprios livros. O livro que citaremos hoje é a “História do Medo no Ocidente” de Jean Delumeau, publicado pela editora Companhia das Letras.
“Não temos historia do amor, da morte, da piedade, da crueldade, da alegria.” A queixa do historiador Lucien Febvre, em 1948, muito repetida desde então, tornou-se quase um manifesto da disciplina que se convencionou chama a “história das mentalidades”. Uma das lacunas que o fundador da escola dos Annales deplorava foi preenchida pela História do Medo no Ocidente, obra de 1978 e já hoje um clássico.
Ao tornar objeto de estudo o medo, Jean Delumeau parte da ideia de que não apenas os indivíduos mas também as coletividades estão engajadas num dialogo permanente com a menos heroica das paixões humanas. Revelando-nos os pesadelos mais íntimos da civilização ocidental do século XIV ao XVIII – o mar, as trevas, a peste, a fome, a bruxaria, o Apocalipse, Satã e seus agentes – o grande pensador francês realiza uma obra sem precedentes na historiografia do Ocidente.
E isso é o que esta escrito na contra-capa do livro que eu acabei de ler. Vamos dizer que não é nada exagerada a descrição, e ate mesmo cai como uma luva.
À primeira vista, o volume do livro pode parecer desanimador e ate mesmo intimidador com as suas 700 paginas, discorrendo sobre um único tema, que é a historia do medo. Mas ao se folhear pela primeira vez e observando-se o índice, podemos notar que contem uma ampla diversidade de assuntos, cada qual abordado de forma apropriada e sem perder o fio da meada.
A leitura desse livro, uma vez que se passa da introdução que é um pouco teórica e ate mesmo digressiva sobre as razoes do autor em abordar o assunto (pois ele afinal é um historiador, e é dever dele justificar a escolha de seu campo de atuação e os métodos utilizados), torna-se agradável a partir do primeiro capitulo e prossegue assim ate o seu final. O nível de literatura não é denso e nem exigente demais, sendo que qualquer leigo pode ler sem praticamente nenhum problema por ser de fácil compreensão e envolvimento com o tema.
O livro aborda muitos aspectos como a peste, a Idade Média, o comportamento dos homens de antigamente, as personalidades e os seus retratos psicológicos, as doenças, a morte, as guerras, os boatos e sedições, as revoltas, a fome, os demônios, a Inquisição, os muçulmanos, a Conquista das Américas, a cristianização dos povos, heresias, bruxarias, superstições, etc. Enfim, podemos dizer que aborda uma ampla gama de assuntos, com vastas referencias bibliográficas.
Pode-se ate mesmo dizer que a leitura é altamente esclarecedora sobre vários eventos obscuros da Idade Media, do qual não tínhamos conhecimento nenhum. Por exemplo, o medo do Apocalipse e o Juízo Final que dominou a mentalidade europeia dos séculos XIV até o XVII, que acabou influenciando a História em seu curso quando da Reforma Protestante (e em certa medida podemos observar esses comportamentos ainda hoje), ou então o medo excessivo de Satanás, que também acabou por influenciar o curso da Conquista das Américas.
E também temos interessantes relatos de como surgiu o antissemitismo na Europa, que era esparso e raro até o seculo XII, no qual passou a se intensificar a partir do século XIV, em que esse antijudaismo se tornou “unificado, teorizado, generalizado e clericalizado”. Podemos ver como se originaram os guetos, o que foi feito contra os judeus, como surgiram as desculpas para os massacres e progroms, as justificativas religiosas, quem foram os perseguidores, etc. Dado relevante é o impulso antissemita na Europa que foi dado pelos protestantes com as obras “Contra os judeus e suas mentiras” e “Shem Hemephoras”, escritas por nada menos que o Martinho Lutero. E parte dessas perseguições culminaram no Holocausto de nosso século XX.
Uma outra coisa que eu considero bastante útil é o tratamento dado às mulheres que sofreram e muito nas mãos dos europeus durante os séculos XII a XVIII.
São descobertas que se tornam gratificantes e nos fazem desejar obter mais fontes, pesquisar mais, e descobrir um pouco mais sobre o assunto. Não poucas vezes, tive de fazer anotações de nomes, datas, livros a ler ou pesquisar referencias futuras.
O único pecado do livro é a falta de tradução entre colchetes para os títulos dos livros que o autor cita (e foram centenas de obras citadas, em latim, francês, alemão, inglês, etc.), mas isso não prejudica o andamento da obra. Outra coisa do qual senti falta é a ausência de gravuras e imagens que pudessem compor melhor a obra, para demonstrar um pouco da arte medieval, umas cenas da vida cotidiana europeia, cenas históricas. Por isso, eu mesmo tive de interromper a leitura algumas vezes para poder pesquisar no Google por referencias iconográficas e artísticas, como o “Apocalipse” de Albrecht Durer, por exemplo.
Enfim, há medo dos europeus contra tudo e todos, e desconfiam uns dos outros, em todas as circunstâncias possíveis. E isso em plena Renascença.
A leitura desse livro é altamente recomendável para quem gosta de ler sobre Historia, aprender mais sobre o nosso passado, a influencia desses tempos medievais na construção da moderna sociedade atual e a formação do caráter da civilização Ocidental. E também, não somente para aprendizado, mas como para divertimento, interesse, um excelente passatempo.
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