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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Capistrano de Abreu (1) O grande contexto


José D'Assunção Barros
Dentre as grandes contribuições do final século XIX e início do século XX para o desenvolvimento da historiografia brasileira, certamente um nome adquire especial lugar de destaque: o de Capistrano de Abreu, historiador cearense que constrói sua carreira no Rio de Janeiro das últimas décadas deste século, e que adentra as primeiras décadas do século XX. Antes de compreender a especificidade desta contribuição e desta concepção historiográfica que flui através da escrita precisa e concisa de Capistrano – bastante inovadora em relação ao que então se produzia naquele ambiente historiográfico do Império que tivera em Varnhagen o seu maior nome – será preciso delimitar todo um contexto social, político e cultural de uma nova época, atentando não apenas para a história brasileira como também para a nova conjuntura internacional.

Depois, será o momento de identificar as fases internas no pensamento historiográfico de Capistrano de Abreu, e, por dentro destas várias fases, avaliar as obras que permitem singularizá-las, seus objetivos, suas temáticas, os interesses com os quais elas sintonizam, os diálogos historiográficos estabelecidos, as práticas e representações que as informam. De acordo com a perspectiva analítica em que nos basearemos, e que foi apresentada pela primeira vez por Arno Wehling (1977), existiriam pelo menos dois “capistranos”, e seria mesmo possível identificar na obra de Capistrano de Abreu uma ruptura que a certo momento inverte a sua postura historiográfica anterior. Assim, após o “historicista cientificista” que em uma primeira fase buscava leis gerais e a identificação de possíveis determinismos com vistas a localizar em uma grande narrativa as etapas da formação brasileira, o ano de 1883 – após a obra Descobrimento do Brasil – irá nos trazer uma virada radical na obra do historiador cearense. Isto é particularmente interessante para a análise historiográfica, pois enquanto em certos autores existe uma unidade identificável, e em outros um deslizamento de uma fase a outra, em Capistrano há uma ruptura do historiador consigo mesmo. Analisar essa ruptura é útil para iluminar seja os traços do “historicismo cientificista”, ou seja os traços de um historicismo mais relativista que se opõe à identificação de um sistema geral à maneira positivista ou evolucionista.

Dito isto, o nosso objetivo neste primeiro momento será o de levantar as condições locais, nacionais e internacionais que possibilitam o surgimento da historiografia da Capistrano de Abreu – uma historiografia que, do ponto de vista de sua temática e de seus objetivos, já se mostra desde o primeiro momento capaz de ultrapassar o modelo político tradicional e de adentrar por uma escrita historiográfica já preocupada com a dimensão sócio-econômica, e até com aspectos culturais, ao mesmo tempo em que já adquire uma abrangência de visão suficiente para abandonar uma narrativa histórica centrada nas elites de modo a abarcar também elementos populares importantes. Esta história – este projeto de uma nova historiografia – não nasce obviamente pronta em Capistrano, e parte de certos princípios formadores, entre os quais a ambição inicial de decifrar as influências da Natureza sobre a Civilização. Um bom começo para entender a trajetória historiográfica de Capistrano de Abreu será nos interrogarmos pelo contexto político-cultural europeu relativo ao período de formação historiográfica do historiador cearense.

Neste nível contextual mais externo – correspondendo a uma época na qual o contexto histórico europeu impunha freqüentemente uma interferência bastante direta sobre os destinos políticos e culturais do Brasil – os anos 1870 abrem-se precisamente com esse acontecimento particularmente significativo que foi a Guerra Franco-Prussiana, com a derrota dos franceses para os alemães. Porque este evento teve tanta repercussão no mundo cultural brasileiro? Para compreender essa questão, é preciso ter-se em vista que a cultura nacional – e a feitura historiográfica em particular – era até então fortemente marcada por uma influência francesa, por vezes até uma influência exclusivamente galocêntrica no âmbito da obra de determinados autores. Ainda que, após esta data, autores franceses como Augusto Comte, Taine ou Renan continuassem estendendo sua influência sobre o pensamento historiográfico, geográfico e sociológico do novo período – e que até se fortalecessem através da intensificação do Positivismo no Brasil, para o caso da influência de Augusto Comte – a verdade é que a derrota francesa no plano político europeu contribuiria de alguma maneira para abalar a sua hegemonia cultural sobre o Brasil, e os novos pensadores das últimas décadas do Império mostram-se francamente abertos também a outras influências, mais particularmente às influências intelectuais advindas da Alemanha, que sai do conflito de 1870 como a grande vencedora no plano político europeu.

Além disto, é importante lembrar outro fio importante desta intrincada trama que contribui para trazer a influência alemã ao universo historiográfico brasileiro. Referimo-nos ao fato de que desde 1835, com a publicação de uma primeira obra historiográfica intitulada Notícias do Brasil, e particularmente a partir de 1841, quando se torna primeiro secretário do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, vinha se destacando um grande nome entre os historiadores brasileiros: o de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878). A publicação dos dois volumes de História Geral do Brasil, entre 1854 e 1857, traria um prestígio crescente a Varnhagen, que era filho de uma portuguesa e de um engenheiro-militar alemão que se estabelecera no Brasil a serviço do Império Português. Essa formação familiar de Varnhagen o ligaria desde cedo à influência do historicismo alemão relacionado à linha rankiana, e, uma vez que ele se tornaria o mais proeminente historiador de sua geração no Brasil, é natural que a mesma influência se estendesse de modo particularmente vivo aos quadros historiográficos brasileiros. Desta maneira, os meados do século XIX já assinalam no Brasil um complexo quadro de disputas no qual o positivismo francês e o ‘historicismo romântico’[1] afirmam-se como duas importantes melodias em contraponto.

De todo modo, com a emblemática derrota militar dos franceses para os alemães em 1870, o ambiente intelectual brasileiro torna-se ainda mais aberto à diversidade teórico-metodológica: não apenas à influência alemã, como também a contribuições vindas de outros países, para além da França. À parte a já mencionada contribuição do historicismo alemão como um todo, para os meios historiográficos brasileiros a influência inglesa é trazida sobretudo por Henry Thomas Buckle (1821-1862) – historiador que escrevera uma extensa História da Civilização na Inglaterra examinada sob a perspectiva de leis gerais que regeriam os desenvolvimentos históricos[2] – mas também pela assimilação do modelo evolucionista de Charles Darwin pelas ciências sociais, particularmente através do darwinismo social proposto por Herbert Spencer (1820-1903).

A idéia de que o evolucionismo poderia ser aplicado a todas as ciências, inclusive às humanas, estará então em pauta através da adaptação de conceitos como o de “seleção natural” para os modelos explicativos da sociedade humana, para além da utilização de paradigmas de visualização das sociedades e civilizações humanas como grandes organismos que nascem, amadurecem, declinam, ou mesmo morrem. Já com relação à influência alemã, talvez ainda mais forte, os grandes nomes que passam a freqüentar a paleta de leitura dos historiadores, sociólogos e geógrafos brasileiros são os de Ranke e Ratzel. Através deste último, a historiografia e o pensamento social brasileiro passam a respirar a atmosfera conceitual do Determinismo – geográfico, climático, biológico – por vezes repercutindo em teorias sociais que se propunham a examinar a composição populacional do ponto de vista de “raças” diferenciadas com características próprias e com um modelo de hierarquização implícito na relação que se propunha entre elas, obviamente visando favorecer com esta leitura o superioridade do fator de descendência européia.

Também se inaugura nos nossos meios historiográficos uma nova intensidade relacionada à preocupação cientificista, seja a partir de um viés positivista inspirado em Comte, seja dentro de uma perspectiva influenciada pelo evolucionismo ou pelo darwinismo social[3]. Investia-se cada vez mais na idéia de que a mesma objetividade com que os cientistas estudavam a natureza ou os fenômenos físicos poderia ser aplicada de alguma maneira ao estudo dos fatos sociais. Por outro lado, se adquirem algum destaque os modelos sociológicos simplificados e generalizadores que pretensamente trariam uma maior objetividade à análise social, fortemente amparada de outra parte em uma crítica sistemática da documentação histórica, alguns fatos internos à realidade brasileira favoreceriam, ou mesmo imporiam a alguns autores, uma nova consciência relativa à diversidade nacional. Apenas para dar um exemplo, autores como Silvio Romero impunham-se a si mesmos a tarefa de descobrirem um Brasil verdadeiro – diversificado, e por vezes destoante em relação ao Brasil até então desenhado pela intelectualidade nacional – e logo a diversidade nacional e a complexidade brasileira não tardariam a “discursar” com bastante eloqüência através de artistas e escritores que pudessem captá-la, e até a “gritar” através de acontecimentos políticos imprevistos.

A título de exemplo, e já considerando a fase de ultrapassagem do Império com os primeiros anos após a proclamação da República, podemos lembrar que nem bem os primeiros republicanos se acomodaram nos seus novos postos e estouraria em 1896, em pleno sertão da Bahia, um dos mais impressionantes e sangrentos episódios da História do Brasil, onde a ‘Guerra dos Canudos’ revelaria nacionalmente um sertão novo, até então desconhecido dos brasileiros que viviam nas cidades bem organizadas do litoral e do sul. Canudos, movimento de inspiração religiosa que se organizara em torno do profeta Antônio Conselheiro, trouxe à tona uma estranha massa formada por índios, caboclos, mulatos, pretos ... sertanejos em geral – expressão humana de indefinidas combinações multirraciais que não se adequavam aos bem arrumados tipos étnicos que eram idealizados desde o romantismo brasileiro. A cobertura jornalística do movimento de Canudos, e de sua violenta repressão pelo exército republicano, renderia um dos maiores livros do princípio da República: Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha (1866-1908) – obra em que pela primeira vez era avaliada de frente a questão do subdesenvolvimento do Brasil, e em que se percebia com muita clareza que dentro deste país existiam muitos brasis. Para o que nos interessa, a importância de Os Sertões está em evidenciar a emergência de uma nova postura intelectual perante a multidiversificação da sociedade brasileira. Para a emergência de uma obra como Os Sertões o pesquisador precisou deixar de ser “romântico”, teve de abandonar a coleta de dados de superfície e o mero impulso emotivo, precisou compreender por dentro os homens que iria investigar (e não de fora, como mero colecionador de peculiaridades) – sobretudo, ele precisou de método. É esta nova postura que marca a passagem do cronista ou do colecionador romântico, meramente movido por uma empolgação afetiva ou por uma erudição ornamental, para o pesquisador moderno.

Diga-se de passagem, o combate à velha postura romântica – esta que se mostrara tão confortável na época de Varnhagen e dos fundadores do IHGB – seria precisamente uma das tônicas da geração historiográfica presidida pela contribuição de Capistrano de Abreu. (WEHLING, 1991, p.265). Para além do fato de que o Romantismo já começava a ser questionado na própria Europa, o Brasil das últimas décadas do século XIX oferecia ainda novos contextos que catalisariam de modo particularmente intenso a produção de idéias novas. Nem o mundo político nem o mundo econômico eram já os mesmos.

Há decerto muitas contradições políticas e econômicas envolvidas neste novo período. Entre os eventos mais impactantes, terá tido seu peso a Guerra do Paraguai, que, após seu término, em 1865 podia passar a ser examinada de maneira mais distanciada, revelando contradições importantes da sociedade brasileira no que tange à diversidade do seu aspecto populacional e, conseqüentemente, deste Povo Brasileiro que logo precisaria ser examinado de uma nova maneira pelos historiadores. A Escravidão, por exemplo, e conseqüentemente a contribuição negra para a formação social e cultural do Brasil, era uma das questões entre outras tantas. Tal como demonstra Ricardo Salles em seu ensaio sobre a participação de escravos na Guerra do Paraguai (SALLES, 1990), muitos escravos haviam combatido nas fileiras do exército nacional. Embora não tantos como propunha a antiga historiografia revisionista, os escravos constituíam pelo menos 10% do efetivo militar brasileiro naquela guerra[4]. Eram brasileiros? Estavam, afinal, inseridos na sociedade nacional de modo efetivo?

De igual maneira, a já citada Guerra dos Canudos, trinta anos depois e já no período Republicano, continuaria a expor brutalmente, através dos acontecimentos sociais e políticos, as contradições entre a noção política de Povo, associada ao conceito de Cidadania plenamente exercida, e a noção étnica de Povo. A natureza deste povo, sua constituição diversificada, os antagonismos entre os vários setores, o contraste entre os variados modos de vida, tudo isto ainda clamava por análises historiográficas.

Vale lembrar ainda que, para além da questão social propriamente dita, a nova geração de historiadores contemporâneos a Capistrano de Abreu começa a se formar intelectualmente em um mundo repleto de incontornáveis contradições econômicas e políticas, para não falar nas culturais. Que dizer da paradoxal contradição política examinada por Lilia Schwarz (1998), segundo a qual neste período Dom Pedro II atingiria o auge da popularidade, e ao mesmo tempo viveria já de modo intenso os primeiros sinais do seu declínio, delineando-se aqui uma crise orçamentária que perduraria até o tempo que ainda restava para o Brasil Império? Ao mesmo tempo, o próprio Exército, ampliado, modernizado e organizado mais sistematicamente para sustentar-se na Guerra do Paraguai de modo a apoiar a política Imperial, em um tempo não muito distante seria precisamente uma das forças decisivas para a derrubada desta mesma Realeza (e, é bom lembrar, também para a imposição das idéias positivistas). Afirmam-se também no cenário político nacional contradições incontornáveis entre o Poder Moderador e o sistema representativo, cresce a insatisfação liberal, fortalece-se o Partido Republicano Paulista. O quadro político era efervescente, e a ele acrescentavam-se mudanças significativas no plano social e econômico, que iam desde a crise do Sistema Escravista ao fortalecimento econômico e político de novos setores sociais, tal como este que autores diversos identificaram como o “embrião de uma classe média urbana” (WEHLING, 1991, p.266).

Em que medida exemplos como o da incorporação da população escrava e forra às lutas na Guerra do Paraguai, ou da explosão de diversidade trazida à tona pela Guerra dos Canudos e de sua interpretação por Euclides da Cunha, entre outros tantos que poderiam ser ressaltados, contribuem para uma compreensão das condições em que vai sendo gestado o novo pensamento historiográfico brasileiro das últimas décadas do século XIX, com destaque para a produção de Capistrano de Abreu? Eles são importantes porque – no contexto da assimilação do cientificismo europeu – estes acontecimentos emblemáticos nos podem nos dar uma idéia bastante clara, antes de mais nada, acerca da tensão essencial que permeia a produção intelectual da geração de historiadores que trouxe na crista de sua onda a contribuição historiográfica de Capistrano de Abreu.

Por um lado, esta nova geração de historiadores se abrira francamente à ambição do cientificismo, à influência de novos horizontes teóricos trazidos por linhas de influência que, para além da França (mas também a abrangendo), incluíam agora autores ingleses e alemães, permitindo-lhes vislumbrar modelos deterministas vários, paradigmas generalizadores de compreensão da sociedade, modelos organicistas e outros mais. Por outro lado, a diversidade inerente à própria população brasileira – explodindo a partir de acontecimentos como Canudos ou como as revoltas federalistas no Sul – impunha não apenas que se levasse em conta a multidiversificação étnica e social brasileira, como também que se tratasse em primeiro plano – como tema central para a compreensão da história nacional – a questão da composição populacional, do povo brasileiro, dos modos como este povo se organizava em sociedade ao longo do vasto território nacional, dos confrontos e combinações que se estabeleciam nos espaços rurais e urbanos. A diversidade de gentes e de espaços nacionais era certamente uma temática que começava a impor enfaticamente a sua presença no centro do palco historiográfico.

Dito de outra forma, ‘generalismo’ e ‘atenção à diversidade’ estabeleciam a sua luta surda ou o seu indelével diálogo no interior da obra dos novos historiadores do fim do século. Conforme se dava um encaminhamento ou outro a esta tensão, tinha-se uma posição mais próxima ao Positivismo – generalizante, confiante nas leis gerais capazes de determinar o comportamento humano e de orientar a percepção sociológica ou historiográfica – ou uma posição mais próxima ao historicismo mais relativista, corrente que tendia a reconhecer ou enfatizar os particularismos, as culturas nacionais, o não enquadramento do estudo do homem a uma única tábua de análise. Um balanço mais geral mostra um predomínio inicial da influência positivista na historiografia brasileira do período, pois dos centros culturais do Rio de Janeiro à Escola de Minas, em Ouro Preto, é bem perceptível a importância do pensamento de Comte ou Spencer como formador do pensamento historiográfico da nova geração; apenas em Recife tem-se um franco predomínio da linha de força historicista, expresso em uma resistência ao cientificismo sociológico que se estabelecia a partir de uma distinção mais clara entre natureza e cultura. Entre os grandes nomes, Tobias Barreto ocupava uma posição mais excepcional e extremada, que recusava a existência de leis para a história humana e que, para retomar uma observação de José Carlos Reis, era já quase um “culturalista” (REIS, 2000: p.90).

De qualquer maneira, a tendência mais ampla da historiografia brasileira das três últimas décadas do século XIX apontava para a sintomática ocorrência desta tensão entre ‘generalização’ e ‘reconhecimento da diversidade’ nos vários autores, ocasionalmente com algum destes pólos a predominar na obra deste ou daquele historiador. Esbatiam-se nas diversificadas produções historiográficas, lado a lado, desde um sociologismo cientificista no qual apareciam em menor ou maior grau as influências de Comte ou Spencer, até aquele modelo de historicismo que, para alguns autores, como é o caso de Arno Wehling (1991, p.267), já pode ser denominado “historicismo cientificista”.

A questão da temática, ou do enfoque historiográfico que separa as duas fases maiores de nossa primeira historiografia – a geração de Varnhagen e a geração de Capistrano de Abreu – apresenta uma importância certamente considerável. Se o tema fundamental da historiografia brasileira anterior à Guerra do Paraguai, notadamente com Varnhagen, era o Estado Imperial, a população seria para os historiadores da geração de Capistrano de Abreu a preocupação determinante (REIS, 2000, p.89; WEHLING, 1991, p.265). A isto podem ser acrescidas, naturalmente, as já mencionadas transformações do contexto político: se Varnhagen escrevera suas principais obras quando a Monarquia se consolidava nos anos 1850, já Capistrano de Abreu escreve o seu primeiro texto historiográfico – o Necrológio de Varnhagen (1878) – quando tanto a Monarquia encontrava-se já abalada, como também se achava em crise o próprio regime escravocrata (WEHLING, 1994). O Estado Imperial já não podia ser o tema mais festejado pelas buscas historiográficas, e da questão político-institucional alguns historiadores começavam a derivar sutilmente para a questão social, para a necessidade de se pensar também a questão econômica sobre novos prismas, e para a ambição de compreender de alguma maneira a multidiversificação cultural. Ainda sendo questões que começavam a ser apenas tateadas nestas últimas décadas do Império e nos primeiros anos da República, o século XX imporia definitivamente aos historiadores brasileiros estas novas preocupações, sem contar que logo viriam da Europa novas influências que reforçariam e dariam suporte a estas tendências.

Esta passagem das antigas preocupações exclusivamente políticas da historiografia brasileira para um novo âmbito de perspectivas que incluíam aspectos culturais e econômicos sintoniza-se perfeitamente, conforme se vê, com a migração das temáticas centradas no Estado e na Nação para as temáticas centradas no Povo, etnicamente falando (WEHLING, 1991, p.265). Tal como bem assinala Arno Wehling, se a geração de Varnhagen e dos fundadores do IHGB havia sido motivada pela preocupação e necessidade de “inventar” o Estado e a Nação, agora, com o Estado-Nação já consolidado, caberia à nova geração de historiadores e intelectuais – liderada por homens Capistrano de Abreu e Sílvio Romero – a tarefa de inventar (de descobrir) o Povo. É disto que se trata. O Povo, aqui considerado de uma perspectiva étnica e não política, corresponde a esta população multidiversificada que começa a ser percebida através de eventos vários, como a já citada Guerra dos Canudos. Esta impressionante diversidade humana do povo brasileiro, logo veremos, seria uma das dimensões fundamentais das análises historiográficas propostas por Capistrano de Abreu.

Não é de se estranhar, pode-se acrescentar, que uma produção historiográfica mais refinada como a de Capistrano de Abreu, já orientada para este novo objetivo de fundo que era o de apreender o “Povo” por dentro de um contexto de invenção do “Estado” e da “Nação” que já havia sido adequadamente trabalhado pela geração de Varnhagen, tenha permitido ao historiador cearense trazer a inovadora contribuição de acrescentar à camada de história política uma nova camada de história social, que não está presente na geração anterior. Wehling (1991, p.270) chama atenção, na obra de Capistrano ainda da primeira fase, para a constatação de “duas histórias paralelas”. A velha história política fora bastante adequada para uma historiografia que perseguira essencialmente os objetivos de “inventar” o Estado e a Nação. Mas uma nova história social, a ser percebida em paralelo, se mostrava também necessária a este novo historiador que buscava agora apreender também o “povo”. A história política do estado e da Nação, poderemos acrescentar, era importante mas não mais suficiente. Para dar a perceber a nova nota do acorde formador da identidade brasileira – o “Povo” – era preciso introduzir o contraponto de uma nova melodia, de uma narrativa social da história. Uma nova camada, metaforicamente falando, acrescentava-se agora à polifonia historiográfica trazida pela contribuição inovadora de Capistrano de Abreu.

Para esquematizar o que até aqui foi dito, podemos vislumbrar uma primeira oposição diacrônica relativa ao desenvolvimento da historiografia brasileira. A geração historiográfica presidida por Francisco Adolfo Varnhagen fora aquela em que os conceitos de “Nação” e de “Estado” ocuparam a centralidade das análises e descrições historiográficas; já a geração historiográfica presidida por Capistrano de Abreu seria aquela na qual a idéia de “Povo” vem a constituir o principal cenário:

Quadro 1: Duas Gerações Historiográficas.


Esta oposição entre as duas grandes gerações historiográficas brasileiras do século XIX, de resto bastante adequada para um primeiro momento da análise, não deve, contudo, iludir-nos quando tivermos em vista um estudo mais específico da obra de Capistrano de Abreu – um autor para cuja compreensão de sua produção historiográfica impõe que não a consideremos de forma monolítica[5]. No afã de empreender uma aproximação mais rica e adequada da trajetória de Capistrano de Abreu na história de nossa historiografia, os analistas têm se empenhado em identificar fases possíveis que permitam discriminar por dentro esta importante produção historiográfica a partir das características de suas obras, de suas temáticas privilegiadas, de sua maneira de tratar e conceber a história. A análise que empreenderemos mais adiante, conforme já foi pontuado, nos levará à adoção da proposta de Arno Wehling (1991, p.266) para uma compreensão da obra de Capistrano de Abreu em fases internas. De acordo com esta perspectiva, depois de uma pequena fase inicial de formação historiográfica, a obra de Capistrano de Abreu conhece entre 1874 e 1883 uma fase que pode ser denominada “historicismo cientificista”, e que se apóia fundamentalmente em uma “concepção mecanicista do real”, em uma metodologia indutiva e na busca de leis e generalizações capazes de dar a compreender as sociedades humanas historicamente realizadas. Em seguida, há um desenvolvimento bem distinto, em ruptura mesmo com relação a esta fase cientificista, tal como pode ser visto no esquema abaixo:

Duas Fases de Capistrano de Abreu 


Concentremo-nos, por hora, na fase de formação do historiador, e em sua passagem do ambiente intelectual cearense ao do Rio de Janeiro – então sede do governo Imperial brasileiro.

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Leia a continuação deste artigo e sua versão integral na revista Projeto História, da USP, através do sítio http://ning.it/npgCmV.

[BARROS, José D'Assunção. “Duas fases de Capistrano de Abreu – notas em torno de uma produção historiográfica” in Projeto História. (Revista da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PucSP). Vol. 41, dez. 2010. p.455-489. ISSN: 2176-2767. http://ning.it/r7FGR e http://ning.it/npgCmV]


Notas.
[1] Arno Wehling, em seu artigo “Capistrano de Abreu e Sílvio Romero – um paralelo cientificista” (1991), utiliza a expressão “historicismo romântico” para o que considera uma segunda fase do historicismo, correspondente metodologicamente à obra de Ranke, na Alemanha, e à História Geral do Brasil de Varnhagen, aqui no Brasil. Depois desta fase iniciar-se-ia um terceiro momento, apodado por Wehling de ‘historicismo cientificista’. Quanto aos primórdios historicistas, refere-se a um ‘historicismo filosófico” no século XVIII, no qual se destacam nomes como o de Vico e Montesquieu (WEHLINH, 1991, p.267).
[2] A assimilação por historiadores brasileiros de Buckle, historiador que perseguia as leis gerais da História, não deixava de trazer contradições para a historiografia do Império, empenhada na afirmação da identidade nacional e em situar o Brasil no quadro das nações civilizadas. Em sua obra publicada em 1857 – uma Introdução para a História da Civilização na Inglaterra, Buckle sustentava que o desenvolvimento da civilização européia seria assinalado pela influência cada vez menor do mundo natural, pois as forças mentais acabariam por sobrepujar às condições físicas. Em contrapartida, referindo-se ao Brasil, país caracterizado pela impressionante abundância de vida natural, afirmava que aqui o homem estaria condenado a viver eternamente em condições primitivas. Ver MARTINS, 1977.
[3] “O cientificismo, conforme seu sufixo indica, foi a transformação da ciência de método de abordagem em visão de mundo” (WEHLING, 1991, p.267).
[4] Durante muito tempo, havia dominado o cenário da historiografia sobre a Guerra do Paraguai uma certa perspectiva, que apresentava no livro de Chiavenatto (1979) a sua obra mais influente, que indicava que o exército brasileiro era formado basicamente por escravos. Esta afirmação foi contestada por historiadores como Francisco Doratioto (2002) e Eduardo Salles (1990), que avaliam em no máximo 10% o real efetivo de escravos no exército em campanha. De qualquer maneira, a necessidade imperial de promover uma grande participação de setores diversos para a formação de um grande exército, inclusive contando com os escravos, não deixou de conceder voz a setores sociais que antes não a tinham. Ganham destaque também, como chefes militares, muitos alforriados negros (SALLES, 1990).
[5] O marco inicial no empenho de identificar fases que denunciem rupturas na obra de Capistrano de Abreu deve ser atribuído a um artigo de Arno Wehling para a Revista do IHGB intitulado “Capistrano de Abreu – a fase cientificista” (1977).
 

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